16 dezembro 2009

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CALENDÁRIOS

Correrias, apertos, problemas - e alegria, e carinho, e amor.
Cristina Moraes Vojvodic
— Mas, se formos fazer um para cada um, não vai dar tempo. É muita coisa, mãe.
O comentário da filha mais velha, embora não fosse desprovido de objetividade, carregava, no tom, uma boa dose de preguiça.
— Não precisamos fazer para todos. Podemos dar só para as senhoras e meninas.
Era a vez do protesto masculino:
— E os homens, não ganham nada? Fica feio, mãe.
— Podemos fazer trufas para os homens.
A filha do meio também tinha algo a dizer:
— Trufas, nós já fizemos no ano passado e, além disso, depois dos ovos de Páscoa, não quero nem pensar em passar horas com aquele cheiro de chocolate a dar até arrepios de enjôo.
Era engraçado ver como argumentavam os três filhos, criticando uma ou outra proposta, mas, definitivamente, tomando como certa e própria a idéia de que os presentes de Natal seriam feitos por eles. Já fazia algum tempo que a mãe inventara de fazer presentes muito pessoais que significavam, além do óbvio, uma boa maneira de ocupar os filhos nesse período das férias em que não se viaja e não se tem programa melhor que dormir, comer, gastar ou, o cúmulo da ociosidade, comer pipoca em frente da televisão.
— Então podemos fazer aqueles biscoitos de nozes para os homens.
— Está bom. São bem gostosos e não são muito difíceis. A gente faz a massa lá pelo dia 21, deixa na geladeira uma noite e assa tudo no dia 22.
— Melhor adiantar isso um pouco. No dia 22, vou estar assando os bolos para o almoço do dia 25.
— Mas os biscoitos não vão ficar velhos?
— Guardados em latas bem fechadas, eles se conservam por muitos dias. Não tem perigo.
— Mas e o calendário, não é difícil demais?
O dito calendário de madeira aparecera em uma revista como oferta de uma loja de presentes. A revista passara de mão em mão. Todos tinham achado lindo.
— Mãe! Como vamos cortar a madeira?
— Com a serra tico-tico do vovô. Na realidade, corte difícil mesmo vai ser o desta parte redonda. O resto é de linhas retas, acho que dá até para trazer cortado da loja de materiais.
— Mas se já vem cortado, o que vamos fazer?
— Não se preocupe. Vai ter muita coisa para vocês fazerem. Lixar, pintar, colar, montar... Precisamos é começar logo para dar tempo.
Tudo combinado, começou a fase de execução. A escolha do material obrigou a três incursões em urna loja do tipo faça-você-mesmo. Foram também a duas lojas de ferragens e passaram por três papelarias. A madeira já viria na largura certa, mas o comprimento teria que ser acertado em casa, por causa da tal curva. As tintas, finalmente as apropriadas, tinham cores boas e as arruelas, que viriam a ser os marcadores, pareciam ser do tamanho certo. Algumas idéias geniais e outras tantas adaptações faziam antever um bom resultado.
— Mãe, é incrível! Com o preço de dois calendários prontos - a filha do meio era a contabilista da família - compramos o material para todos os dezesseis que vamos fazer. Que economia!
A mãe não pôde deixar de rir.
— A economia pode ser interessante, mas acho que não é por isso que vamos fazer tudo. Se fosse assim, mais econômico mesmo seria não comprar e também não fazer.
A idéia de não dar presentes de Natal pareceu desconcertar as crianças. A mãe tentou deixar mais claro o que queria dizer.
— Por que vocês querem dar os presentes?
— Porque é Natal, ora!
— Mas por que damos presentes no Natal?
Um breve silêncio. A mais velha, do alto dos seus treze anos, foi a primeira a conseguir formular alguma idéia:
— Para comemorar o nascimento de Jesus, para repartir essa alegria com os outros.
— Está certo. E se é assim, qual é o melhor tipo de presente?
Os dois mais novos seguiam o diálogo sem perder uma palavra.
— O melhor que a gente possa dar.
— O mais caro, filha?
— Não, não e isso. O melhor acho que é o presente que mostra a nossa alegria, o nosso carinho.
—É isso, mãe - era a vez de a segunda filha dizer algo -, se o presente tem que mostrar o nosso carinho, aquele que a gente faz mostra isso melhor do que o que a gente compra pronto, porque a gente fica ali fazendo, caprichando, pensando em quem vai ganhar o presente.
Ela não sabia dizer que dar de si era o verdadeiro presente, mas a idéia parecia já se ter formado. A mãe deu-se por satisfeita.
Agora era trabalhar. Bem, a partir de segunda-feira, porque os primos tinham convidado a todos para o fim de semana no sítio e, afinal, o tempo estava ótimo.
Na terça, a mãe já esbravejava:
— Vocês assumiram o compromisso e compramos todo o material. É bom começarem logo; se não, não dá tempo.
— Calma, mãe. Nós vamos fazer tudo, você vai ver. Vai dar tempo e vai sair tudo super certo.
Dois dias depois, ninguém mais tinha certeza. Com a serra elétrica do avô - também ele ajudava - não se conseguia dar ao corte a precisão esperada. Era preciso lixar muito mais do que tinham imaginado. Mas, era tocar o barco e pegar o touro à unha - ou à lixa, se necessário.
— Dezesseis vezes trinta e um... são 396 toquinhos de madeira para fazer os "dias".
— Fugiu da escola, é? São 496, e não pare de lixar.
As "gentilezas" entre irmãos proliferavam.
— Você deixou tudo mal lixado! Está horrível,
— E você também pintou as casinhas como seu nariz. Está tudo borrado.
— Mãe!! Elas não deixam eu ajudar! Elas dizem que não sei fazer nada.
Era sempre preciso intervir para apaziguar os ânimos.
— Se é para brigar, o trabalho não serve para nada. Meninas, descubram uma tarefa que seu irmão consiga fazer bem, ou o ensinem a fazer melhor as que ele já está fazendo. E você, trate de aceitar que elas o ensinem.
Quando a serra elétrica quebrou, muito antes dos 496 pinos ficarem prontos, houve uma certa comoção familiar. Não dava tempo de esperar o conserto da máquina e também não dava para comprar outra, pelo menos naquele momento. Durante o jantar, discutiam as alternativas, desanimados:
— A serra do tio Toninho, não adianta pedir. Na semana passada, ele veio pedir emprestada a do vovô, porque a dele tinha quebrado.
— Quem sabe eu consiga cortar com o serrote - ofereceu-se a mãe.
— Você não agüenta. É muito pesado - o pai era sempre objetivo.
— Então não vai dar para terminar e foi tudo inútil... Silêncio. Continuaram a comer, sem muita vontade.
— Eu serro.
O oferecimento do pai causou surpresa, pois, desde o começo, ele havia deixado claro que não participaria do "projeto calendário" por achar que já tinha trabalho e preocupações demais para assumir outros encargos. Mais tarde, a sós, confessou à mulher que não resistira à frustração estampada nos rostos dos filhos. Afinal, eles só queriam ter a alegria de dar alegria.
O trabalho prosseguiu.
— Mãe, a Debbie telefonou e convidou para ir ao cinema com ela. Podemos ir?
— Mas, e essa tinta que vocês já prepararam? Vai secar tudo. E, depois, acho que não dá mais para perder tempo. Faltam só três dias para a véspera do Natal. Vocês ainda não moeram as nozes para os biscoitos. Vocês sabiam que eu não ia dar conta de tudo sozinha.
— A Debbie disse que adorou as nossas idéias e que vem para ajudar depois do cinema. A tinta a gente cobre com um plástico e ela não seca.
Apesar de desconfiar da eficiência do mutirão, a mãe acabou concordando. Para seu espanto, à noite, as quatro crianças trabalharam com afinco e ultrapassaram a meta estabelecida para aquele dia. Tudo caminhava.
— As arruelas não se encaixam nos pinos!
— Mas nós medimos e experimentamos!
—É, mas o verniz aumentou um pouquinho a grossura dos pinos e agora não dá.
Encontrar novas arruelas, do tamanho certo e que fossem de um material que aceitasse a tinta já comprada era uma nova tarefa para o avô; a mãe já estava irremediavelmente acampada na cozinha, pilotando o almoço que serviriam aos tios, primos e avós no dia de Natal. Será que os calendários ficariam prontos afinal?
Ficaram.
No dia 24, enquanto os embrulhavam com celofane e fita, todos relembravam as peripécias que haviam ocorrido naqueles últimos quinze dias. Riam todos.
Os pacotes, arrumados no chão ao pé do presépio, aguardavam o momento de serem entregues.
— Será que vão gostar, mamãe?
— Eu gostaria.
— Tem um para você tamb...
— Fique quieto, língua de trapo. Era surpresa...
— Não importa. Vou gostar do mesmo jeito. Não precisam brigar. Agora, vão-se arrumar para a missa de vigília que não quero sair em cima da hora.
— Calma, mãe. Vai dar tempo...
Do livro "Retratos de Família", de Cristina Moraes Vojvodic, Editora Quadrante

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